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Ser mãe - Minha dedicação exclusiva

Ser mãe - Minha dedicação exclusiva

Mãe e filho com deficiência na Lagoa da Pampulha
Conversamos um pouco sobre dedicação exclusiva na maternidade, no post "Ser mãe - Dedicação exclusiva".

Hoje quero contar sobre a minha escolha. Por envolver filho com deficiência pode até parecer que não se compara de forma alguma a qualquer maternidade, mas você verá que os detalhes podem ser os mesmos.

Para saber detalhes sobre a trajetória até o diagnóstico, você pode ler o post "Ser mãe - Filho com deficiência - Diagnóstico"

Vivi dois momentos bem diferentes sobre essa tomada de decisão. Uma enquanto estava tudo bem e outra no oposto.

Lá atrás, há quase onze anos, meu Renan nascia e como já contei, fruto de gravidez maravilhosamente normal e parto por cesariana completamente dentro do esperado. Ele foi bem avaliado pelo pediatra e fomos para casa felizes.

Eu já era casada há dez anos, estávamos num bom momento do relacionamento, tínhamos acabado de comprar e reformar um lindo apartamento. Nosso falecido cachorro Eddie tinha cinco anos e tínhamos planos de viver novos tempos com a chegada do pequeno.

Dedicava-me há quase doze anos a um banco multinacional. Ia subindo os degraus na carreira como o esperado. Permaneci em licença maternidade e férias em casa, num total de sete meses naquele macio e áspero período da maternidade, onde tudo é lindo e pesado ao mesmo tempo.

Consultas de acompanhamento do desenvolvimento não soaram nenhum alerta.

Então, no momento de retornar ao trabalho, estava pronta. Nenhuma incerteza me assombrava. Estava ansiosa por degustar detalhadamente aquela nova etapa que começaria. Planos que existiam tão na epiderme. Só depois pude enxergá-los de forma mais concreta. Passeios, viagens, convívio com o irmão pet, primos e toda a familia. Escola. Ah a escola era sem dúvida um celeiro de projeções deliciosas.

Mas... um ponto de interrogação existia. Sorrateiro, manso. E ficava lá, na espreita de tudo se revelar. Vamos então aos pontos que fizeram parte da história e que enxergo muito definidamente como colaboradores na minha decisão de dedicação exclusiva:

- Eu sabia | Espiritualidade

Ainda pré-adolescente na casa dos meus pais, minha irmã recebia alguns amigos do trabalho para uma confraternização. Uma das convidadas levou o filho de alguns meses de vida e precisou trocar sua fralda. Na cama da minha mãe ela o colocou e enquanto ele ficou lá, eu olhava magneticamente para cada parte do seu corpo molinho e gorducho. 

Não sei como, mas percebi algo diferente nele. Digo que não sei como por não ter referências de desenvolvimento infantil, pela falta de convivência mesmo. Mas as diferenças dele me chamaram a atenção. Era molinho além da conta. As perninhas se abriam relaxadas demais, bracinhos também. Você pode não acreditar, mas eu tive a certeza naquele momento que teria um filho daquele jeitinho. 

Depois que a festa acabou, ouvi minha irmã contando sobre aquela mãe, que tinha um filho com síndrome de Down, mas não aceitava, negava mesmo. Então eu soube que ele tinha deficiência. Mesmo assim continuei com a certeza que seria assim meu filho. 

Tempo depois, mais madura na minha espiritualidade, digeri como sendo o Espírito Santo que me tocou naquele momento em que o observava.

Eu nunca esqueci esse momento. Namorei, noivei, casei e só dez anos depois engravidei e mesmo com tudo dentro da normalidade, eu parecia sempre, no fundo, esperar aquilo acontecer. Uma certeza calma e tranquila, inexplicável, de que meu filho teria deficiência.

Durante a compra do apartamento e sua reforma, nos últimos três meses de gestação, uma sutil quietude, beirando a falta de entusiasmo com a conquista era sempre presente. Novamente aquela sensação de que algo difícil aconteceria permeava o mais profundo do meu ser.

Tudo dentro da aparente normalidade até finalmente o fatídico primeiro dia de escolinha do Renan acontecer e eu enxergar algo palpável sobre esse mistério. Quando notei a diferença dele para as outras crianças, foi como se um grande carimbo de confirmação tivesse sido dado. Mais uma vez a incrível sensação de se abrir um buraco no chão ou a alma sair do corpo, mas com o aconchegante acalentar de Deus fazendo tudo parecer um sonho lúcido.

Só depois, aos nove meses de idade a síndrome manifestou pra valer em seu organismo no meio de uma virose e o mundo real antes imaginado, aconteceu. Ele tinha deficiência genética rara.

Esse saber, seguido de muita confiança na espiritualidade que aprendi com minha mãe, sem dúvida alicerçou cada passo dessa jornada. A leveza, a aceitação tão prévia de algo tão difícil fizeram meu luto ser abreviado e o foco otimizado para soluções práticas do dia a dia. Não que não tenha sofrido a cada exame difícil, a cada detalhe sobre o diagnóstico. Não. Mas sair da zona de sofrimento o quanto antes. A mente estava pronta pra isso.

Perdoe se soa prepotente, mas é a realidade e jamais negaria isso a mim mesma. Ouso dizer que por muitas vezes o Espírito Santo nos toca, nos mostra e não percebemos. Perdemos a grande chance de sermos iluminados todos os dias pela espiritualidade dissipada de tantas maneiras.

Tive a honra de receber a minha certeza ainda tão jovem, certamente com mente e espírito mais livres que hoje, quando a sensibilidade estava genuinamente intocada.

Toda essa segurança então foi ingrediente importante no momento de decidir me dedicar exclusivamente.

- Não amar o trabalho | Estabilidade financeira

Eu tinha vinte e um anos e precisava de um novo trabalho. Cursando administração de empresas na faculdade, tinha como colegas algumas funcionárias de um banco. Meu marido era bancário também em outra instituição e definitivamente não era algo apetitoso para mim. Mesmo assim uma dessas colegas me ofereceu a oportunidade de participar de um processo de seleção.

Eu realmene não queria. A dinâmica do negócio não me agradava, mesmo assim, por precisar e não ter outra opção em vista, aceitei. Dediquei com afinco para conquistar a vaga que acabei conseguindo. Era um estágio que dois anos depois se tornou efetivo.

Depois disso quase onze anos se passaram com muito comprometimento e responsabilidade, porém nunca com paixão. Aquela que te faz casar no pico da loucura. Não mesmo. Mas respeitava meu trabalho e tinha muita gratidão por ele.

Essa falta de paixão, só percebi bem depois, foi uma ausência importante para tomar a decisão de dedicação exclusiva. Eu não tinha apego. Deus me fez ingressar naquela vaga não foi à toa. É muito fácil imaginar o quão doloroso seria se tivesse que abrir mão de uma atividade apaixonante. Ele me poupou disso.

Além dessa questão, também tinha a grande bênção de termos estabilidade financeira com o emprego do meu esposo, mesmo com as incertezas do mercado de trabalho, não deixava de ser naquele momento um atenuante.

Mãe e filho. Criança com deficiência. Doença rara. Mãe e filho sorrindo.

- Acreditar no matrimônio

Eita que isso é delicado! Mas vamos lá.

Tínhamos dez anos de casados, sendo apenas o último ano mais agradável. Tanto é que decidi engravidar. Casei com dezenove anos, hoje olho para aquela menina e digo que era uma criança. Mas tudo bem, mesmo com tantas inabilidades importantes no sustento de uma boa relação, eu tinha uma coisa muito forte: acreditava no sagrado do matrimônio. 

Acreditava em Deus, no invisível, no poder que nos uniu na igreja (e olha que nunca fui de frequentar os ritos semanalmente). O que Deus uniu o homem não separava mesmo pra mim e isso se tornou um ímã para que permacesse lá.

Quero dizer que nunca foi fácil, mas sempre acreditei no poder presente da unção, da promessa. Isso tanto para aqueles dez anos que tinham passado quanto para a vida que se estendia à minha frente com um filho diagnosticado tão gravemente.

Renan precisaria de mim integralmente. Ou isso ou terceirizar tudo para trabalhar fora. Não via sentido nisso.

Acreditar que tinha um marido capaz de nos sustentar sem cobranças, sem mesquinhez, que fosse responsável em qualquer cenário futuro, sem dúvidas foi crucial para minha decisão.

- Minha personalidade

Para chegar na minha decisão precisei de um tempo, como os namorados fazem. Pedi ao banco e me concederam férias e mais trinta dias de licença.

Foram dias de muita oração, muito silêncio, muita reflexão. O prazo venceu e eu não estava pronta.

Eu na verdade queria sentir a resposta de Deus, queria sentir o toque dEle. Aquela certeza.

Foi nesses dias que visitei cada um desses tópicos sem perceber. Cada motivo, cada justificativa, cada intenção que cercava a necessidade de pedir demissão era como uma pedra preciosa que, cada uma em seu tempo, ficava em minhas mãos sendo olhada, analisada e aprovada.

Eu só tinha uma certeza: que precisava ter certeza. Mudaria tudo. Passaria a ser dependente financeiramente, não teria a mesma liberdade do ir e vir, a rotina seria exaustiva. Seria para o resto da vida.

Por fim então pensei em mim. Como eu era, minhas características, personalidade e capacidades. Foi quando me dei conta que eu tinha exatamente o perfil para cuidar de um filho como o Renan. E tinha exatamente o perfil que não daria conta de conciliar trabalho com a maternidade.

Dedicada, detalhista, sensível, perceptiva, forte, atenciosa, perfeccionista e tanto mais! Um espírito pronto a servir e não desistir.

E digo isso não romantizando, mas muito consciente das dificuldades que enfrentaria como mãe, mulher e esposa. 

A questão foi que me vi sendo capaz de passar por tudo com minha fé, objetividade e foco no que importa. Minha facilidade em dar sentido ao sofrimento ficou clara como água.

Essa autocrítica e autopercepção foram cruciais para me deixar segura e completar a certeza que precisava.

Então temos um final...

Mesmo com todas essas certezas, não tinha certeza. Cinco dias tinham passado além da licença concedida e de um jeito inexplicável, na verdade irresponsável para meus padrões, eu simplesmente não tinha retornado ao trabalho. Não tinha uma resposta e esperava por ela, dEle.

Sabe quando você compra algo, acompanha o rastreio pelo celular e sabe que vai chegar? Está a caminho... Era assim que eu estava.

Até que num dia, em minha cozinha, eu senti. Uma grande certeza tomou conta de mim. Poderia subir o Everest da decisão. Era Ele. Estava pronta.

No outro dia me arrumei, dirigi até meu trabalho, sentei com meu superior e disse: "Estou adiando algo decidido. Eu me demito".

Voltei para casa com uma leveza flutuante e não saí mais. Nenhum dia sequer de arrependimento. As dificuldades aconteceram e acontecem, mas a semente de segurança que Deus plantou em mim prevaleceu.

Ludmila Barros - 🔗@ludmilapb

Comentários

Ana disse…
Parabéns pelo blog! Você escreve muito bem.
Você era tão boa no que fazia no Banco que jurava que era apaixonada pelo trabalho.
Anônimo disse…
Vc é simplesmente demais!
Anônimo disse…
Simplesmente emocionante. Parabéns pela sua garra. Deus continue te abençoando. Cláudia Regina
Ludmila Barros disse…
Oi Ana! Obrigada flor! Pois é... Não ser apaixonada não quer dizer fazer mal feito ou com má vontade né? A gente se adapta! Beijo!!!
Ludmila Barros disse…
Que bom que gostou querida! Muito obrigada!
Anônimo disse…
Vc é muito maravilhosa <3 Sempre te admirei, desde criancinha!
Ludmila Barros disse…
Ownn obrigada! Pena que não deixou o nome... :)

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