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Conto - Anestesia geral

Conto - Anestesia geral

mesa com caderno sem pauta e lapis, escrita conto, anestesia geral
Trinta anos e parida há três meses. Madrugada interrompida por um provável infarto, tamanha dor que Giovana sentia no peito. Fincadas e falta de ar. Só podia ser o coração.

Acho que vou morrer, vamos logo ao hospital. Sentia que não resistiria ao tempo gasto para arrumar as coisas do bebê e chegar ao destino.

Luzes apagadas, ninguém na espera, tudo seria rápido. Mas não. Não pra aquela dor.

Socorro! Socorro! A vontade era bradar, mas a dor e a vergonha só permitiam suplicar até certo tom que fosse suficiente para chamar atenção de médicos e enfermeiras que insistiam em não aparecer.

Finalmente uma alma desgraçada apareceu mas o sonho de uma intravenosa com algo fluindo nas veias estava distante. 

O anjo veio mas não tinha asas. O médico chegou irritado, certamente foi acordado por Giovana mas não teve coragem de reclamar. Chegou dizendo que tinham pacientes sendo acordados. Fodam-seeee! Giovana mal conseguia responder às perguntas idiotas, entre elas se tinha usado drogas.

Mal examinada, ouviu que tomaria Buscopan na veia. Buscopan pro coração? 

O fluido entrou pelo corpo como quem sabe o que fazer. Alívio.

Quase amanhecendo imagens revelaram: pedras na vesícula. Muitas. Mas justifica essa dor, doutor? Não exatamente... Mas pode ser. O fato é que são pedras muito pequenas e teremos que retirar o órgão.

O puerpério gritou. A sensibilidade se agitou dentro de Giovana. Quis chorar, mas segurou.

Indo pra casa, carro em movimento, o dia sendo clareado pelo sol da manhã, Cabeça apoiada no braço que estava dobrado na janela. Vou tirar um órgão! Puta que pariu! Lágrimas desciam mas escondeu do marido. Vergonha de novo. Ao mesmo tempo se concentrava no que o médico disse: quase não era um órgão porque não produz, só armazena.

Ora bolas, mas era a sua vesícula! Seria mutilada. Confirmou que não era pra tanto. De todas as pessoas conhecidas que tinham passado por essa cirurgia, apenas uma reclamou da vida. Concluiu então: estou dentro da maioria! Certeza!

Um mês depois, bloco cirúrgico. Gentilmente a enfermeira Maria pede pra se despir e vestir aquele pano que deixa a vergonha de trás em desvantagem. Foi aí que o pavor de apagar geral e nua tomou conta. 

Fez Maria jurar que não a deixaria sozinha. Fingindo condenscendência, jurou. Deu-se por satisfeita, afinal tinha que acreditar que alguém olharia por ela.

Mãos presas, como Mel Gibson em Coração Valente ao ser estripado, o anestesista pede pra contar de cem pra trás. Como assim? Até hoje ela tenta entender por que cem e não dez. Com três segundos já era.

Pálpebras pesadas tentam se levantar. A consciência se esforça pra estabelecer naquele corpo inerte. Giovana acordou numa ala estranhamente escura, entre pessoas na mesma situação. Parecia uma câmara fria, como em filmes com corpos. Mas era aberto e não fazia frio.

Sentindo-se suave não sabia se estava viva. Com dificuldade conseguiu atenção de uma enfermeira. Como quem tem um ovo na boca perguntou: deu tudo certo? A enfermeira mal respondeu que sim e Giovana já chorava. O vulto perguntou se estava bem e por que chorava? Entre lágrimas e ovos respondeu que estava feliz. É que estou felizzzz!

Deu pra ver o sorriso da enfermeira achando graça da pessoa no barato da anestesia geral. De toda forma relatou ao médico. Giovana ouviu. Doutor, a Giovana está chorando, mas ela disse que é porque está feliz. Todos riram.

E as pálpebras não resistiram e despencaram.

Pobre Giovana! Não pertenceu à maioria como esperava.

Ludmila Barros - 🔗@ludmilapb

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