Pular para o conteúdo principal

Conto - Sessão de cinema - Fuga

Conto - Sessão de cinema

Era sexta-feira quando ela viu sobre a estreia do filme no cinema. Em segundos sentiu urgência em assisti-lo. Pensou tudo ao mesmo tempo: amava fazer isso, não o fazia há muito tempo, apaixonou por esse filme há dez anos no primeiro, era um filme longo de três horas (como gostava ainda mais). 

Logo enviou mensagem pro marido no trabalho, dizendo que iria na próxima semana assistir. Olhou as melhores salas, horários e quis fugir das lotações de férias. Ficou realmente ansiosa. Ficou combinado.

Mas aquele desejo visceral chamou sua atenção. Por que queria tanto isso?

Tinha mesmo algo a mais. Tinha a ver com a semente plantada da tristeza que brotava. Ela por fim entendeu. Queria o refúgio do escuro e do isolamento por três horas.

Era um presente que estava se dando. Escolheu uma sala VIP com belas poltronas reclináveis, comprou logo aquele combo astronômico de pipocas de todos os sabores e refrigerantes, mesmo sabendo que não daria conta.

Conseguiu chegar uma hora antes, tomou um bom café espresso na porta do cinema, onde uma refinada lanchonete sempre a agradava. Certa vez o gentil dono lhe deu panquecas da casa para degustar.

Lá foi Ana então para seu esconderijo. Ah como foi prazeroso entrar naquela grande sala escura! Como planejado, tinham poucas pessoas. Salpicadas cabeças estavam bem distribuídas e o desejoso silêncio reinava. Só a tela gigante falava com os trailers que anunciavam o início do filme.

Ana se sentiu no paraíso, se sentiu dentro de si mesma, o melhor lugar que poderia. Aconchegada no estofado macio, sua comida e bebida no colo como criança, sentindo o prazer das pipocas doces e salgadas.

Mergulhou na tela e se emocionou, riu e se emocionou de novo (mais do que o normal, parecia).

Cumpriu a promessa e não olhou o celular por aquelas horas. Saiu satisfeita com tudo. Foi perfeito como esperava e precisava.

Foi tão intenso que não parava de pensar, querendo mais daquilo e entender também. Fez retrospectiva.

Os dias vinham sendo difíceis para Ana. Deprimida, não queria nada de nada do de sempre. Estava infeliz e insatisfeita. Queria ficar sozinha, sem rostos, sem sons conhecidos da rotina. Queria viver, mas viver diferente. Não queria partilhar momentos. Queria vivê-los com ela mesma, no conforto do seu eu, sem cuidar de nada nem ninguém. Sem ponderar opiniões e desejos com outras pessoas.

Ana se sentia como peixe na rede. O que era a vida se não redes o tempo todo? Conseguia se livrar de uma e lá vinha outra. Mas agora ela queria se confortar naquela rede. Não debater, se entregar, viver ali dentro, sozinha.

Queria dar-se o luxo de não ter que se alegrar pelo outro e sim poder ser satisfeita com sua tristeza que sabia, um dia passaria. Isso que importa saber a quem sofre. Não tem como explicar a dor a alguém. E ninguém tem a obrigação disso. Basta cada um respeitar, vigiar e esperar.

Então, tentando se entender, ela entendeu tudo isso. Aquela sessão de cinema foi, antes mesmo de perceber, uma oportunidade de ser contente com sua tristeza por três horas.

Ludmila Barros - 🔗@ludmilapb

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Muito prazer!

Muito prazer! Olá! Como vai? Esse é um blog pessoal , cheio de sinceridade. Verá aqui minhas reflexões sobre tudo que amo ou não. Nada de bandeiras ou doutrinar pessoas. Mãe de filho com deficiência e esposa em construção.  Amo escrever e aqui é meu cantinho para praticar. Um blog para quem ama café , escrita , leitura , ar livre, animais, outras coisas e refletir um cadinho. Sou Ludmila Barros, já passei dos quarenta, moro em Belo Horizonte/MG, meu filho  pré adolescente tem um irmão canino chamado Álvin.  Sou casada há mais de vinte anos, pasmem, com o mesmo marido. Caçula de três irmãos, nascida e criada em Ipatinga/MG, onde morei até meus trinta e três anos. Uma infância simples, sem faltas.  O sustento da familia sempre foi de um bar que funcionou por muito trabalho dos meus pais . Bar que me ensinou muito. Gostos Apaixonada por café mas não viciada. Se pudesse teria um sítio só para ter quantos animais quisesse.  Não consigo ler mais de um liv...

Mãe guerreira

 Mãe guerreira "Nossa Ludmila, vocé é uma mãe guerreira , viu?" Uma vizinha querida me disse essa frase enquanto aguardávamos o elevador.  Não foi a primeira vez que ouvi isso nos últimos onze anos, mas dessa vez parece que prestei mais atenção e percebi algo diferente. Já mencionei sobre essa expressão em alguns posts no Instagram, levantando a questão de frases feitas que podem  romantizar situações ou simplesmente serem termos que de nada valem. Não que me incomode ser chamada assim, longe disso. Geralmente percebo empatia  genuína pelo locutor.  Na verdade também tenho um pouco de ranço de regras demais em torno do que se pode falar hoje em dia. Até onde tem respeito , meus ouvidos e meu coração não se incomodam. Sobre romantizar Mas pra quem está aqui nessa  leitura , sobre romantizar, que também me parece verbo da moda, soa como camuflar um mundo que não é encantado.  Dizer que a mãe de uma criança com deficiência  é guerreira, é especial,...

Ser mulher - Desabafo

Ser mulher - Desabafo Deus me perdoe, mas ser mulher é difícil pra cara-ca. Falarei por mim, na primeira pessoa, para que não invada os achados da cabeça de ninguém e também pensando no universo do relacionamento amoroso, mas cabe em diversos cenários. Saber da beleza de ser mulher é lindo. Manter o ritmo de ser mulher é que parece não ser fácil.  Quero falar das partes chatas mesmo, como desabafo. Saiba que conheço e valorizo o belo no feminino. Começo pelo desgastante lidar com assédios desde a infância. O sexo oposto é implacável em seus desejos até mesmo com crianças. E não é só com aqueles que assediam própria e pontual ou doentemente.  Por ser mulher sempre tive que ter pudores, cuidados e pisar em ovos para que não sugerisse algo a mais. E pior, mesmo com toda essa merda de precaução ainda sofri diversos momentos constrangedores. Amizades, ponto de ônibus, trabalho... todo lugar é lugar pra isso. Só aqui já bastaria, mas não, tem muito mais. Em seguida me vem à mente a...