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Colorir e a vida adulta

Colorir e a vida adulta

livro de colorir, desenho de árvore com fundo de floresta, colorido roxo
Há uns sete anos, lembro de deixar o livro de ilustrações com o lápis roxo na bancada da cozinha, enquanto tentava alimentar meu filho, com dificuldade (o que era rotina e estressante). 

Recorria ao livro entre uma tentativa frustrada e outra, como quem deixa ali um pote de doce para aliviar a fome da tensão, enquanto não se pode parar o trabalho. 

E eu me desconectava por alguns segundos, talvez minutos, colorindo mais uma pequena parte daquela página. E voltava ao trabalho. E coloria. E voltava ao trabalho.

Quando começa

O lúdico da infância e seu descompromisso com o perfeito deixaram esse gosto e apetite frescos na memória.

Porém, até bem adulta, não colori mais. Apenas gostava muito. Sempre me lembrei da mesa de mogno bem preta em que estudava e coloria até lá pelos meus onze anos. Vagava por livrarias só pra sentir os aromas.

Então, uma autorização para ser criança tinha surgido no mundo. Os livros de colorir para adultos viraram moda e fui tomada de alegria. Bobagem. Por que não fiz antes? O reencontro foi maravilhoso. Mais que gostar, eu precisava.

Criar sobre algo que já existe, dar vida. Um desenho, qualquer forma impressa numa folha de papel ou um belo livro ilustrado. Habilidades naturais talvez pareçam necessárias, mas não acho. A mim pelo menos bastou sensibilidade e necessidade mental.

São tantos enfeites nesse prazer! Aquela coisa do sensorial quando as mãos sentem as ranhuras do papel ou o peso do lápis, quando o nariz sente o cheiro da madeira e do livro, quando a boca se move junto com os dedos, quando os olhos veem as cores. Um deleite.

Recorrer à arte em momentos difíceis torna-se um belo refúgio. Não um refúgio escuro ou enganoso, mas colorido e alopático – em doses pequenas as coisas se transformam. Ir lá na sua criança e ficar até quando quiser ou puder.

Tudo tem sentido

ilustrações livro de colorir daydreams, duas mulheres se olhando
A escolha de uma cor pode traduzir o que se sente ou quem se é naquele dia. A liberdade de escolha de cada detalhe, se deseja planejar o resultado final ou não, ouvir o lápis fazendo seu trabalho, escolher luz ou sombra, apertar com força até quebrar a ponta sem querer ou ir suave. Sentir tudo desacelerar, as dores diminuírem.

Hoje e quase sempre a vida não nos permite essa liberdade. Percebi essa chance na nostalgia de ser criança. Abraço a mim mesma, ainda menina e me deixo abduzir.

Colocar a vaidade no papel. Tem muito disso.

A mente fica lá de cima, como maestrina. Como ela gosta! Se antes estava atordoada, dissipa. Se antes pensava mil coisas, agora não lembra. É inusitado para ela, já de meia idade, ver lápis de cor entre os dedos e um pássaro para soltar a imaginação. 

Ela ri, antes mesmo da boca, como quem vê um bichano pelo chão. E ela se entrega, esperta que é já percebeu a bela alternativa ao caos de antes. Pretensiosamente ou não, pega um, pega outro material. Pensa que ficará bonito e quer logo ver, vaidosa que é. Alguém também há de gostar, melhor ainda!

Não há pressão de prazo ou resultado. Pode continuar depois e hoje pode fazer diferente de ontem. Se antes planejou demais, hoje não. Quem sabe tomando chá, café e comendo bolo de chocolate com cobertura de doce de leite?

A arte de colorir é uma grande recrutadora dos sentidos.

O desejo surge onde parece ficar guardada parte da personalidade infantil, e que seja! As crianças já têm o céu!

Numa infância, digamos solitária, eu tinha outras crianças para brincar apenas nos horários escolares. Em casa, sem vizinhos, com irmãos mais velhos e pais trabalhando duro, tive que aprender a me virar sozinha no entretenimento.

Estudar, brincar, jogar e colorir eram feitos com introspecção. Eu me perdia na imaginação concreta, nunca fui boa com a abstrata. Não sou e nunca fui fluida em criar e desenhar – mas sim em preencher espaços existentes, desenhos prontos.

Fuga

livro de colorir, mandala com fundo preto, canetinhas
Usar as cores é sentir tudo que sentia naquela mesa com grandes gavetas repletas de mistérios e de lápis de cor. É estar no agora, com tantas responsabilidades e desejos de fuga. Fugir não é fraqueza, fugir é ser inteligente.

A boa fuga é estratégia de recomeço ou simplesmente para se ausentar e olhar mais para si. Enquanto menina, essa fuga era pela descoberta, pela fantasia e pelo lúdico. Observar os lápis espalhados em gavetas, não saber as cores que tinham ou que faltavam, escolher a paleta da vez, mesmo sem ainda saber o que era isso. 

Sentir o cheiro forte que vinha da madeira dos lápis e da mesa com óleo de peroba. Finalmente ir colorindo devagar entre devaneios e o latido do cachorro enquanto fazia muito calor.

mulher adulta, mãe e esposa, essa fuga vem para fazer diferença. É uma busca real de alívio e descanso. Às vezes até um grito de socorro. Hoje já não há tanta despretensão. Sei todas as cores que tenho, um bom apontador de manivela e variedade de imagens. Tudo organizado numa mesa lisa e cadeira confortável.

Tinha uma convicção. Sempre acreditei que eu estaria pronta para cada desenho, na sequência do livro, página por página. Como estar pronta para cada novo dia, depois de uma vida de aprendizado.

As mãos endurecem, enferrujam se não são usadas, e com os lápis isso fica bem evidente. Eu queria que cada página fosse um exercício para a próxima. Queria acumular habilidade com mãos macias, mente mais criativa, novas técnicas aprendidas com algum vídeo na Internet. 

Queria sempre superar o anterior. Era misto de grande prazer, carinho, respeito pelas ilustrações e desejo de fazer algo bonito, como se um prêmio me esperasse por aquilo.

Por um tempo, nas noites de segunda a sexta-feira, tive ajuda de Vera nos cuidados do meu filho. Ela mal chegava e eu já estava a postos na mesa com meus materiais. Um vício frutífero como jogos de vídeo game ou quebra-cabeças. Eu engolia aquele tempo que era só meu. 

Ficava ausente, presente. Algumas vezes levei os materiais para o clube e coloria sob belas sombras de árvores, cantos de passarinhos e vista de grandes piscinas e lagoa. E voltava extasiada para casa.

Ludmila Barros - 🔗@ludmilapb

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