Pular para o conteúdo principal

Conto: Morto-vivo

Blog Sem Papas. Conto Morto-vivo. Mão saindo da terra.

Conto: Morto-vivo

Tinha uma auxiliar de serviços gerais na empresa. Creuza.

Era daquelas pessoas sorridentes, alegres, tinha inteligência e perspicácia que logo se notava.

E era feia, muito feia. Aquela feiura que a gente acostuma e que se camufla pelo bom papo e alto astral.

Era alta, muito magra, curvada. O rosto tinha formato diferente de todas as possibilidades comuns, como se fosse uma anomalia - mistura de quadrado e retangular, e largo.

Olhos muito espertos e vigilantes, sempre curiosos, harmônicos.

Nariz delicado, sempre arrebitado enquanto andava. E tinha sardas. A boca afundava no maxilar que era exageradamente pra frente.

Seu bom humor sempre presente nos aproximou. Sempre que possível, almoçávamos ou lanchávamos juntas. Papeávamos até.

Falava em namoros, pretendentes e sobre seus planos de futuro de ser bem sucedida profissionalmente.

Ela também tinha algo de misterioso, parecendo coisa de quem é observador e crítico demais.

A empresa era num shopping e certa vez, enquanto comprávamos coisas gostosas no supermercado, ela me contou uma situação que tinha vivido e nunca mais esqueci.

Sabe aquelas coisas que assim, sem mais nem menos, anos e anos depois, ainda aparecem na sua mente? Mesmo que não seja nada demais. É sobre isso.

Acho que fiquei mais impressionada com o caso porque ela tinha requinte para contar. Junto com seu ar único e interessante.

Lembro agora que ela gostava de ler.

Mas sobre o episódio, ela foi visitar um conhecido que sabia estar muito doente, nas últimas.

Não sabia explicar, mas ele vivia praticamente sozinho e estava acamado.

Ao entrar na casa, sentiu mau cheiro.

Chegando perto dele, era algo de filmes.

Tinham bichos saindo pelos ouvidos. Minhocas ou vermes. Sei lá. O cheiro era terrível, ela lembrava.

E ele conversava normalmente, como se não tivesse consciência ou como se não sentisse sequer dor.

Era um morto-vivo.

Ela sentiu vontade de tirar os bichos, por gastura. Mas só pensou.

E foi embora após sua visita cordial.

Lembro disso e sempre penso: ela inventou...

Ludmila Barros 🔗 @ludmilapb

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Muito prazer!

Muito prazer! Olá! Como vai? Esse é um blog pessoal , cheio de sinceridade. Verá aqui minhas reflexões sobre tudo que amo ou não. Nada de bandeiras ou doutrinar pessoas. Mãe de filho com deficiência e esposa em construção.  Amo escrever e aqui é meu cantinho para praticar. Um blog para quem ama café , escrita , leitura , ar livre, animais, outras coisas e refletir um cadinho. Sou Ludmila Barros, já passei dos quarenta, moro em Belo Horizonte/MG, meu filho  pré adolescente tem um irmão canino chamado Álvin.  Sou casada há mais de vinte anos, pasmem, com o mesmo marido. Caçula de três irmãos, nascida e criada em Ipatinga/MG, onde morei até meus trinta e três anos. Uma infância simples, sem faltas.  O sustento da familia sempre foi de um bar que funcionou por muito trabalho dos meus pais . Bar que me ensinou muito. Gostos Apaixonada por café mas não viciada. Se pudesse teria um sítio só para ter quantos animais quisesse.  Não consigo ler mais de um liv...

Mãe guerreira

 Mãe guerreira "Nossa Ludmila, vocé é uma mãe guerreira , viu?" Uma vizinha querida me disse essa frase enquanto aguardávamos o elevador.  Não foi a primeira vez que ouvi isso nos últimos onze anos, mas dessa vez parece que prestei mais atenção e percebi algo diferente. Já mencionei sobre essa expressão em alguns posts no Instagram, levantando a questão de frases feitas que podem  romantizar situações ou simplesmente serem termos que de nada valem. Não que me incomode ser chamada assim, longe disso. Geralmente percebo empatia  genuína pelo locutor.  Na verdade também tenho um pouco de ranço de regras demais em torno do que se pode falar hoje em dia. Até onde tem respeito , meus ouvidos e meu coração não se incomodam. Sobre romantizar Mas pra quem está aqui nessa  leitura , sobre romantizar, que também me parece verbo da moda, soa como camuflar um mundo que não é encantado.  Dizer que a mãe de uma criança com deficiência  é guerreira, é especial,...

Ser mulher - Desabafo

Ser mulher - Desabafo Deus me perdoe, mas ser mulher é difícil pra cara-ca. Falarei por mim, na primeira pessoa, para que não invada os achados da cabeça de ninguém e também pensando no universo do relacionamento amoroso, mas cabe em diversos cenários. Saber da beleza de ser mulher é lindo. Manter o ritmo de ser mulher é que parece não ser fácil.  Quero falar das partes chatas mesmo, como desabafo. Saiba que conheço e valorizo o belo no feminino. Começo pelo desgastante lidar com assédios desde a infância. O sexo oposto é implacável em seus desejos até mesmo com crianças. E não é só com aqueles que assediam própria e pontual ou doentemente.  Por ser mulher sempre tive que ter pudores, cuidados e pisar em ovos para que não sugerisse algo a mais. E pior, mesmo com toda essa merda de precaução ainda sofri diversos momentos constrangedores. Amizades, ponto de ônibus, trabalho... todo lugar é lugar pra isso. Só aqui já bastaria, mas não, tem muito mais. Em seguida me vem à mente a...