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Pai, avô e neto

Pai, avô e neto Quando meu pai faleceu , eu, meu filho Renan e meu marido Emerson já estávamos há dias na cidade dele. Já não estava bem. Naquele turbilhão todo que a morte faz, mesmo que calma, teve a perspectiva do Renan. Pelo menos tenho a minha versão disso. Foi interessante porque vínhamos de um ano difícil sobre o comportamento do nosso pequeno. Muito choro e indisposição sem explicações. Eis que ficamos 45 dias na casa dos meus pais e em todo o tempo, como um milagre, e acredito mesmo que seja, Renan ficou quieto, calmo como não contemplávamos há muito tempo. Eu me lembrava que tinha que conversar com ele sobre seu avô , mas deixava para depois, enquanto estava ocupada com uma coisa aqui e outra ali. E sabia que ele tudo ouvia e via. Participou de tudo. Eu estava devendo uma conversa. Até que após o falecimento , ele passou a demonstrar reações emocionais enquanto escutava conversas sobre o avô. Fazia beicinho e até chorou com lágrima silenciosa. Tem que explicar Eu então me...

Mãe guerreira

 Mãe guerreira "Nossa Ludmila, vocé é uma mãe guerreira , viu?" Uma vizinha querida me disse essa frase enquanto aguardávamos o elevador.  Não foi a primeira vez que ouvi isso nos últimos onze anos, mas dessa vez parece que prestei mais atenção e percebi algo diferente. Já mencionei sobre essa expressão em alguns posts no Instagram, levantando a questão de frases feitas que podem  romantizar situações ou simplesmente serem termos que de nada valem. Não que me incomode ser chamada assim, longe disso. Geralmente percebo empatia  genuína pelo locutor.  Na verdade também tenho um pouco de ranço de regras demais em torno do que se pode falar hoje em dia. Até onde tem respeito , meus ouvidos e meu coração não se incomodam. Sobre romantizar Mas pra quem está aqui nessa  leitura , sobre romantizar, que também me parece verbo da moda, soa como camuflar um mundo que não é encantado.  Dizer que a mãe de uma criança com deficiência  é guerreira, é especial,...

Colorir e a vida adulta

Colorir e a vida adulta Há uns sete anos, lembro de deixar o livro de ilustrações com o lápis roxo na bancada da cozinha, enquanto tentava alimentar meu filho , com dificuldade (o que era rotina e estressante).  Recorria ao livro entre uma tentativa frustrada e outra, como quem deixa ali um pote de doce para aliviar a fome da tensão, enquanto não se pode parar o trabalho.  E eu me desconectava por alguns segundos, talvez minutos, colorindo mais uma pequena parte daquela página. E voltava ao trabalho. E coloria . E voltava ao trabalho. Quando começa O lúdico da infância e seu descompromisso com o perfeito deixaram esse gosto e apetite frescos na memória. Porém, até bem adulta , não colori mais. Apenas gostava muito. Sempre me lembrei da mesa de mogno bem preta em que estudava e coloria até lá pelos meus onze anos. Vagava por livrarias só pra sentir os aromas. Então, uma autorização para ser criança tinha surgido no mundo. Os livros de colorir para adultos viraram mo...

Tristeza x felicidade

Tristeza x felicidade Estar triste é tão ruim. Conhecer a felicidade faz isso. Daquela tristeza profunda, paralisante. Quando já se sabe como sair dela e mesmo assim não consegue, vem a culpa. Acho que isso, a culpa, é o que mais acaba comigo em períodos tristes . Corrói .  Há sempre motivos para sentir alegria . Desde respirar e todo o resto.  Estar triste não é ingratidão . Aprendi isso. Viva a terapia . Mesmo assim, mesmo já aprendido, não consigo evitar. Só amenizar, às vezes. Talvez agora esteja com motivos mais profundos. Acho que é isso. Ter motivos para ser feliz não exclui a infelicidade. Não. E tudo bem. Não sou uma má cristã por estar infeliz. Viu cérebro? As lutas alheias também contribuem para essa culpa dita antes. O tal do olhar em volta e ver as dificuldades superadas dos outros que ainda sorriem. Isso pode ser benção ou destruição. Não se trata de ser feliz, mas de aprender a lidar com as tristezas. Posso estar triste ou ter motivos para isso e viver bem. ...

Conto - Sessão de cinema - Fuga

Conto - Sessão de cinema Era sexta-feira quando ela viu sobre a estreia do filme no cinema . Em segundos sentiu urgência em assisti-lo. Pensou tudo ao mesmo tempo: amava fazer isso, não o fazia há muito tempo, apaixonou por esse filme há dez anos no primeiro, era um filme longo de três horas (como gostava ainda mais).  Logo enviou mensagem pro marido no trabalho, dizendo que iria na próxima semana assistir. Olhou as melhores salas, horários e quis fugir das lotações de férias. Ficou realmente ansiosa. Ficou combinado. Mas aquele desejo visceral chamou sua atenção. Por que queria tanto isso? Tinha mesmo algo a mais. Tinha a ver com a semente plantada da tristeza que brotava. Ela por fim entendeu. Queria o refúgio do escuro e do isolamento por três horas. Era um presente que estava se dando. Escolheu uma sala VIP com belas poltronas reclináveis, comprou logo aquele combo astronômico de pipocas de todos os sabores e refrigerantes, mesmo sabendo que não daria conta. Conseguiu cheg...

Oi, morte

Oi, morte Ontem eu fugi. Vontade de viver só comigo. Conhecer a morte fez isso. Não precisa morrer pra conhecê-la.  Escolhi um café como companhia. Alguém passa falando alto e me irrito. Não se pode sofrer como quer? No fundo sei que nem chego perto da dor máxima. Deus não deixa. De vez em quando Ele abre uma janela e me chama pra debruçar nela. Aí sim, nesses momentos sinto uma partícula da grande tristeza e percebo Seu cuidado , de novo. Porque a lasca que a morte tira (da alma, do coração, do ser) é algo que incomoda o tempo todo, até mesmo quando esqueço dela. Plantou um vazio estranho e lágrimas sempre prontas a descerem pelas bochechas. Inclusive agora elas estão como orvalho, ainda nos cílios.  O kimono do luto me vestiu quando voltei pra casa e à minha rotina. Tudo ficou pesado . Um pesar que passou a fazer parte das minhas células. Até em momentos leves ou quase felizes, sinto um oco, um eco. Lembro dele sem lembrar. Esqueço dele sem esquecer. Eu era curiosa sob...

Conto - Um arroto inesperado

Conto - Um arroto inesperado Regina tinha vinte anos, já casada, falava dois idiomas fluentemente, muito estudiosa desde criança. Se é que alguém estudioso não o seja desde a infância. De familia simples mas onde nunca faltou nada e sobrou o esforço de labutas e suas recompensas. Trabalhava há um ano em uma grande empresa de telefonia que se instalou no Brasil para abrir as portas da tecnologia de celulares. Regina e seus futuros colegas de trabalho foram treinados intensamente antes da inauguração Instalações luxuosas para os padrões da cidade de interior, dentro do shopping. Uniformes impecáveis com meias finas e sapatos pretos fechados. Saias e coletes pretos, camisas brancas de mangas longas e até lenço no pescoço fechando o look quase de aeromoças. O negócio era um sucesso, com atendimento impecável que já corria fama. As atendentes ficavam em baias separadas por grossos vidros fumê e um carpete verde se estendia por todo o ambiente. Na recepção os clientes pegavam suas senhas e ...

Você se foi, mas ficou em tudo

Você se foi, mas ficou em tudo Você se foi, pai . E mais do que antes, te vejo em tudo. Já me fazia bem perceber de onde vim. Olhar pra mim e ver você. Agora mais ainda. Você está na importância do amor simples, silencioso. Sem dizer eu te amo . Porque o seu amor era assim. Amou ao me mostrar a beleza da natureza, nas pescarias, rios e cachoeiras. Amou ao me mostrar o cuidado com os animais, rindo de gargalhar dos bichinhos. E até chorando, emocionado só de vê-los brincando. Amou ao me dizer sem dizer. Amou ao ser reto, honesto, sincero e trabalhador. Amou ao dançar e darçarmos, sem vergonha. Amou ao respeitar o próximo. De tantas formas. Amou ao amar minha mãe, sua querida, sua filha. Era assim que se chamavam: filho e filha. Um amor raro, quando não há margem para romper. Amou quando me mostrou o esposo completamente dedicado que foi. Apaixonado. Mãos sempre dadas, ela era sua. Amou ao não fazer questão de nada, a não ser de ser generoso. Amou ao nunca reclam...

Conto - Anestesia geral

Conto - Anestesia geral Trinta anos e parida há três meses. Madrugada interrompida por um provável infarto, tamanha dor que Giovana sentia no peito. Fincadas e falta de ar. Só podia ser o coração. Acho que vou morrer, vamos logo ao hospital . Sentia que não resistiria ao tempo gasto para arrumar as coisas do bebê e chegar ao destino. Luzes apagadas, ninguém na espera, tudo seria rápido. Mas não. Não pra aquela dor. Socorro! Socorro! A vontade era bradar , mas a dor e a vergonha só permitiam suplicar até certo tom que fosse suficiente para chamar atenção de médicos e enfermeiras que insistiam em não aparecer. Finalmente uma alma desgraçada apareceu mas o sonho de uma intravenosa com algo fluindo nas veias estava distante.  O anjo veio mas não tinha asas. O médico chegou irritado, certamente foi acordado por Giovana mas não teve coragem de reclamar. Chegou dizendo que tinham pacientes sendo acordados. Fodam-seeee! Giovana mal conseguia responder às perguntas idiotas, entre elas se ...

Quantos abusos você já sofreu?

Quantos abusos você já sofreu? Atenção! Contém spoiler! Essas duas tramas permaneceram por dias em minha mente pelo mesmo motivo: abordam o abuso das mulheres em suas diversas formas. Blonde Blonde retrata a conturbada vida de Marilyn Monroe . Não que seja biografia, mas tenta imaginar os bastidores. Vi também um documentário e pude constatar a tristeza: mais uma vida feminina cheia de abusos e falta de apoio. Embora muitas críticas digam que seja fantasioso demais, se assistido com sensibilidade percebe-se a essência. Pai desconhecido por toda a vida, mãe esquizofrênica que tentou matar a própria filha afogada na banheira aos sete anos. Deixada em orfanato, passou por diversos lares temporários. Esperou pelo pai até a morte. Buscava proteção e afeto em figuras masculinas. Sem referências do cuidar feminino, era perdida e insegura como esposa ou companheira.  Seus relacionamentos amorosos, digamos que naturalmente, foram difíceis. Agressões , ciúmes e por fim um caso com os Kenned...